"Depois de tantas buscas, encontros, desencontros, acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando na minha própria pele É me sentir confortável, mesmo acessando, vez ou outra, lugares da memória que eu adoraria inacessíveis, tristezas que não cicatrizaram, padrões que eu ainda não soube transformar, embora continue me empenhando para conseguir.” Ana Jácomo

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setembro 17, 2012

Preto e branco – Luis Fernando Verissimo



“Escrevo peças porque escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” 
Tom Stoppard 

Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco.
Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa.
Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra.
Na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte o misto de cumplicidade e hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo.

HOMEM DE BRANCO - Preto.
HOMEM DE PRETO - Branco.
BRANCO – Por que não uma mistura dos dois?
PRETO – Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
BRANCO – Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você…
PRETO - Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Colocado pingos destemidos em todos os “is”. Dado nome e sobrenome a todos os bois!
BRANCO – Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
PRETO – E temos os tiques nervosos para provar.
BRANCO – Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao setor de traumatismo do Pronto Socorro?
PRETO – Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”. BRANCO -Ainda bem que não é você que manda em nós.
PRETO – Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados…
BRANCO – Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
PRETO – Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e o adiado. Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E, cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero na rua e se controla, seu fígado aumenta? E cada…
BRANCO – Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
PRETO - Não, eu sou o verdadeiro você.
BRANCO – Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
PRETO – Sou tudo o que em nós é autêntico. Ou seja: você é a minha falsificação.
BRANCO -Mas quem aparece sou eu.
PRETO – Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
BRANCO -Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor providencial. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho.
PRETO – Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer…
BRANCO -Branco. E eu…
PRETO – Preto. Por quê?
BRANCO -Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos não é ser branco nem preto, é ser cinza. E não estou falando em cremação. PRETO – Mostrar a quem?
BRANCO – À pla… Onde está a platéia?!
PRETO – Foram todos embora.
BRANCO – Porque não entenderam o nosso diálogo?
PRETO -Porque entenderam. Eu não disse?

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