"Depois de tantas buscas, encontros, desencontros, acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando na minha própria pele É me sentir confortável, mesmo acessando, vez ou outra, lugares da memória que eu adoraria inacessíveis, tristezas que não cicatrizaram, padrões que eu ainda não soube transformar, embora continue me empenhando para conseguir.” Ana Jácomo

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março 18, 2011

Clarice Lispector

Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós
e a isso considerado vitória nossa de cada dia.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceite o que não se entende
porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças

por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais,
e ficado do lado de fora

pois as catedrais que nós mesmos construímos,
tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida larga
e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro
de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes
onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar
mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor
para não termos de reconhecer a sua contextura
de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte

 para tornar a nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber
como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença,
sabendo que nossa indiferença

é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior
e por isso nunca falamos no que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez
de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingénuos

para não rirmos de nós mesmos
e para que no fim do dia possamos dizer

pelo menos
não fui tolo e assim não ficarmos perplexos

antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público
do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.


Clarice Lispector

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