"Depois de tantas buscas, encontros, desencontros, acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando na minha própria pele É me sentir confortável, mesmo acessando, vez ou outra, lugares da memória que eu adoraria inacessíveis, tristezas que não cicatrizaram, padrões que eu ainda não soube transformar, embora continue me empenhando para conseguir.” Ana Jácomo

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maio 16, 2011

Traduzir - Por José Saramago



Escrever é traduzir.
Sempre o será.
Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua.
Transportamos o que vemos e o que sentimos (supondo que o ver e o sentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais que as palavras com o que nos vem sendo relativamente possível expressar o visto e o sentido…) para um código convencional de signos, a escrita, e deixamos às circunstâncias e aos acasos da comunicação a responsabilidade de fazer chegar à inteligência do leitor, não a integridade da experiência que nos propusemos transmitir (inevitavelmente parcelar em relação à realidade de que se havia alimentado), mas ao menos uma sombra do que no fundo do nosso espírito sabemos ser intraduzível, por exemplo, a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta, esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o resto de um sonho que o tempo não apagará por completo.


O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido “tradução”, isto é, uma determinada percepção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor, substanciada, essa percepção, num entramado linguístico e semântico que igualmente não é o seu. O texto original representa unicamente uma das “traduções” possíveis da experiência da realidade do autor, estando o tradutor obrigado a converter o “texto-tradução” em “tradução-texto”, inevitavelmente ambivalente, porquanto, depois de ter começado por captar a experiência da realidade objecto da sua atenção, o tradutor realiza o trabalho maior de transportá-la intacta para o entramado linguístico e semântico da realidade (outra) para que está encarregado de traduzir, respeitando, ao mesmo tempo, o lugar de onde veio e o lugar para onde vai.

Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido. O diálogo entre o autor e o tradutor, na relação entre o texto que é e o texto a ser, não é apenas entre duas personalidades particulares que hão-de completar-se, é sobretudo um encontro entre duas culturas colectivas que devem reconhecer-se.

2 comentários:

  1. "Para o tradutor, o instante do silêncio anterior à palavra é pois como o limiar de uma passagem “alquímica” em que o que é precisa de se transformar noutra coisa para continuar a ser o que havia sido".
    Achei lindo e profundo. Uma verdade incontestável.

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  2. Kerido,

    Q bom q vc gostou do texto simplesmente lindo, neh?

    Bjks

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