"Depois de tantas buscas, encontros, desencontros, acho que a minha mais sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando na minha própria pele É me sentir confortável, mesmo acessando, vez ou outra, lugares da memória que eu adoraria inacessíveis, tristezas que não cicatrizaram, padrões que eu ainda não soube transformar, embora continue me empenhando para conseguir.” Ana Jácomo

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maio 24, 2011

Aparências - José Saramago

Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem éramos e sobre a nossa relação pessoal e coletiva com o lugar em que nos encontrávamos.
O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar não menos importante, aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tato, o olfato, o gosto – conseguissem perceber dele.
Nessa hora inicial, o mundo foi pura aparência e pura superfície.
A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro.
Todas as coisas eram o que pareciam ser pelo único motivo de que não havia qualquer razão para que parecessem e fossem outra coisa.
Naquelas antiquíssimas eras não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”.
Hoje, porém, embora sabedores de que desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que organizações de átomos e que no interior deles, além da massa que lhes é própria, ainda sobra espaço para o vácuo (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que se nos apresenta.
Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico, coincidentes na sua origem, deverão ter-se manifestado no dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior capturável pela consciência e por ela utilizada, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos.
Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela intuição veio a plasmar-se:
“As aparências iludem.” Ou enganam, que vem a dar no mesmo.

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